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Durante o dia, as mulheres desempenham suas funções de trabalho. À noite, preparam-se para dançar. O frenético ritmo do jazz ecoa através das paredes dos bares e cafés, para os quais dirigem-se jovens artistas, burgueses e intelectuais no intuito de viver os prazeres da carne. Orgias e drag queens: em Berlim, tudo é permitido.
Reconstruir a atmosfera cultural da República de Weimar—como foi designada a república instaurada na Alemanha entre o fim da Primeira Guerra Mundial, em 1919, e a ascensão do Nazismo, em 1933—é um exercício imaginativo somente facilitado pelos registros de autores como Christopher Isherwood. Seu livro The Berlin Stories (1945), coletânea de histórias e relatos semi-autobiográficos de seu período vivido na Alemanha Weimar, serviu como base para a realização de um dos mais aclamados êxitos de bilheteria de Hollywood de todos os tempos: Cabaret (1972), filme de Bob Fosse responsável por eternizar Liza Minnelli como ícone do cinema mundial.
Consagrado dançarino americano, Fosse trouxe para o seu cinema a essência do jazz. Em Cabaret, Liza é Sally Bowles, uma ingênua e atrapalhada femme fatale que sonha em se tornar uma estrela de cinema. Enquanto persegue este sonho, Sally ganha a vida como cantora no famoso Kit Kat Club, em Berlim, e ostenta um sem-número de romances mal sucedidos.
Certa ocasião, ela conhece Brian Roberts (Michael York), jovem professor inglês menos interessado em seduzir mulheres do que em preparar-se para suas futuras qualificações acadêmicas. Ambos iniciam um tórrido relacionamento, que é logo interposto pela presença do novo amante de Sally, o milionário Maxmillian von Heune (Helmut Griem).
Diferentemente dos antigos musicais hollywoodianos, nos quais a narrativa se apoia sobre alegorias e sequências de diálogos cantados, neste, os números musicais ocorrem somente no Kit Kat Club, como parte da narrativa ficcional. As aventuras de Sally Bowles simbolizam a euforia dos anos antecedentes à chegada de Hitler ao poder. A extravagância do Mestre de Cerimônias (em inesquecível interpretação de Joel Grey) dita o tom desta euforia, que busca encobrir o crescente estado de ameaça que assola as ruas da capital alemã. O longa fornece-nos um singular retrato do comportamento durante a era Weimar, trazendo à luz temáticas, até então, pouco difundidas, tais como o aborto, a homossexualidade e a condição feminina.
A cultura berlinense do período entre-guerras caracteriza-se pelo hedonismo, que caminha à sombra da bruta força política. Em seu livro The World in the Evening (1954), Isherwood descreve o clima de liberdade sexual na República de Weimar:
“Em Berlim, não era o bastante querer meramente sexo. Esperava-se que você fosse especializado, que procurasse uma adolescente virgem, uma mulher de 70 anos, uma garota com chicote e botas compridas, um travesti, um policial, um pajem ou um cachorro. E no caso de você não poder decidir-se sobre o que queria, havia um Museu de Ciência Sexual, onde podia-se estudar fotografias de hermafroditas, (…) instrumentos de tortura, ilustrações de ninfomaníacas, roupas íntimas femininas utilizadas por oficiais debaixo de seus uniformes, e muitas outras maravilhas.”[1]
As vanguardas artísticas absorveram a influência dessa nova liberdade. Sally Bowles é a representação da “divina decadência” da cultura alemã. Com seus exagerados cílios postiços, cabelos curtos e escuros, corpo andrógino e figurinos risqué à la Lola-Lola (personagem de Marlene Dietrich em O Anjo Azul), ela é a moderna mulher berlinense, livre para experimentar-se. Sua história, entretanto, expõe a farsa da liberdade sexual feminina, que somente existe até onde permite a dominação masculina: no Kit Kat Club, Sally refugia-se da obrigação do mundo a que foi designada enquanto mulher – mãe, esposa, dona-de-casa –, distanciando-se da conduta submissa que reprime em nome da moralidade. No cabaré, Sally põe-se como objeto do prazer masculino, satisfaz seus desejos e fantasias. No cabaré, espaço criado por e para homens; no cabaré, onde “a vida é bela.”[2]
Outros elementos tornam Cabaret uma obra relevante ainda nos dias de hoje, tais como a homossexualidade de Brian, sugerida, inicialmente, em sua aparente assexualidade, e, mais tarde, na tensão erótica existente entre o triângulo amoroso. Anteriormente, a novela de Isherwood já havia originado uma peça: I Am Camera, de John Van Druten (1951), também transformada em filme em 1955, com Julie Harris no papel de Sally Bowles. Devido à censura, nesta primeira adaptação, alguns fatos ambíguos da história original foram alterados, como o aborto praticado por Sally, que foi recontado como uma falsa gravidez.
Da peça de Van Druten, produziu-se, em 1966, na Broadway, um “picante” musical, estrelando Judi Dench. “A verdadeira história,” disse Liza Minnelli em entrevista ao Huffington Post, “o cara [Brian] era gay e esse era o problema. Eles tentaram e tentaram—mas esse é o ponto do filme. A época e o quão fascinado ele é por ela. Sally é tão bizarra, porque ela só quer ser especial. Não uma estrela, porque ser uma estrela poderia afastá-la de ser especial. Ela poderia cantar num cabaré melhor, tinha voz, mas não, ela queria estar lá porque era onde tudo estava acontecendo.”[3]
Recordista de premiações, Cabaret arrebatou o Globo de Ouro de Melhor Filme na categoria comédia ou musical, e 8 Óscares, dentre eles, Melhor Diretor para Bob Fosse, Melhor Ator Coadjuvante para Joel Grey e Melhor Atriz para Liza Minnelli—ela já havia recebido sua primeira indicação à estatueta três anos antes, em 1969, por sua performance em Os Anos Verdes, de Alan J. Pakula.
Sally Bowles: Muito Além de Cabaret
Nascido no Reino Unido em 1904, Christopher Isherwood, quando jovem, sonhava em viver da literatura. Deixou “sua persona inglesa” no início da década de 1930, atraído pela boemia e a agitação cultural de Berlim. Foi onde encontrou vasto material para seus romances.
Em artigo para o jornal Morning Star, o jornalista Peter Frost relembrou sua atuação na Liga da Juventude Comunista, da qual fazia parte uma “misteriosa, elegante e fascinante camarada” de nome Jean Ross. “Quando o filme Cabaret foi lançado em 1972, ouvi uma história estranha e, na época, quase inacreditável”, escreve. “Aquela mesma Jean Ross, dizia-se, era a verdadeira Sally Bowles, protagonista vivida por Liza Minnelli no filme. Ross faleceu em 1973 e eu nunca fui capaz de investigar as origens ou checar a veracidade das histórias. Agora, 40 anos depois de sua morte, acho que encontrei a verdade. É com certeza uma história que vale a pena ser contada.”[4]
Nascida em Alexandria, no Egito, em 1911, Ross era a mais velha dos quatro filhos de um rico empresário do ramo de algodão. Quando adolescente, mudou-se para a Inglaterra para ter sua educação. Aluna brilhante e de personalidade irreverente, forjou uma gravidez no intuito de ser expulsa do colégio – e conseguiu. Para que concluísse os estudos, os pais mandaram-na, então, para a Suíça, onde permaneceu até matricular-se na Royal Academy of Dramatic Art. Aos 19 anos, destacada por sua fluência em diferentes línguas, fez uma curta participação no filme When Sailors Leave Home (1930), comédia britânica de baixo orçamento na qual interpretou uma das concubinas nos haréns do xeique árabe. Ao saber de vagas de emprego para atrizes na Alemanha, mudou-se para Berlim, vivendo a dupla vida de modelo, durante o dia, e cantora de cabaré, à noite.
Foi na vida noturna que Jean Ross foi apresentada a Christopher Isherwood, e iniciaram sua relação de amizade. Assumidamente homossexual, Isherwood punha-se como um assíduo observador do estilo de vida berlinense, “uma câmera com sua lente aberta, passiva, gravando, não pensando.”[5] Em The Berlin Stories, Isherwood descreve Ross como uma rebelde sonhadora, porém sem grande talento artístico:
“Ela tinha uma voz surpreendentemente grave e rouca. Cantava mal, sem nenhuma expressão, suas mãos balançando para os lados – e, ainda assim, sua performance era, em sua maneira particular, boa por causa de sua aparência deslumbrante e seu ar de não se importar com o que os outros pensavam dela…”
Contudo, o autor relata em entrevista que a real Sally Bowles era mais inteligente e fascinante do que pintam as representações de sua figura no teatro, no cinema, e mesmo em seu livro:
“Ela era adorável, maravilhosa. Era cheia de vida e muito mais divertida do que a personagem do livro. Ela brincava com tudo. Tirava sarro do fato de ter uma voz grave e rouca. E, claro, isso estava muito em voga na época – era a época de Dietrich, e cantar dessa forma era uma espécie de imitação.”
Dentre os tantos homens—famosos e não famosos—com os quais esteve romanticamente envolvida, destaca-se o então músico Götz von Eick, de quem engravidou, tendo logo abortado. Mais tarde, em Hollywood, Götz tornou-se conhecido pelo nome artístico de Peter van Eyck.
Acredita-se, também, que a canção These Foolish Things (Remind Me of You), popular nas vozes de Billie Holiday, Nat King Cole, Sam Cooke, Sarah Vaughan, Ella Fitzgerald, entre outros, tenha sido uma homenagem do compositor Eric Maschwitz a sua amante Ross.
A atriz aspirante deixou a Alemanha e partiu definitivamente para a Inglaterra após a ascensão de Hitler. Lá, filiou-se ao Partido Comunista, e até sua morte, em 1973, foi uma ativa militante. Desempenhou, ainda, trabalhos como repórter e crítica de cinema do jornal Daily Worker, escrevendo sob o pseudônimo Peter Porcupine.
The Berlin Stories, eleita pela revista Time como uma das 100 melhores novelas em língua inglesa do século 20, é o adeus de Isherwood à Berlim dos sonhos românticos e do idílio boêmio que cedeu lugar às trevas da repressão.
Referências e Leitura Adicional
[1] Christopher Isherwood: Author interviews and films. Disponível aqui.
[2] Suzuki, Aya. Deconstructive analysis of Sally Bowles as an American: Fake femme fatale in Cabaret. English & American Literature, vol. 75, p.81-102, 2015.
[3] Harnick, Chris. Liza Minnelli on ‘Cabaret’ Memories, ‘Arrested Development’ Return and More. Huffington Post, Jan 29, 2013. Disponível aqui.
[4] Frost, Peter. Jean Ross: the real Sally Bowles. Morning Star Online, Dec 30, 2013. Disponível aqui.
[5] Isherwood, Christopher. Goodbye to Berlin. Vintage; New Ed edition, 1989. Disponível aqui.
Sobre o autora
Rafaella Britto é escritora e crítica de cinema de São Paulo. Co-fundadora e editora do Cine Suffragette, publicação online multilíngue dedicada às mulheres no cinema. Graduanda em Letras e professora de língua inglesa, profundamente apaixonada por literatura, cinema, história da moda, jazz e rock n’ roll.