Revistas de cinema, celebridades de Hollywood e uma dose de spoilers

Letícia Magalhães escreve sobre a história das revistas de cinema e cinema e como nossa percepção de ambas evoluiu no último século.

9 min read

Read in English here.


Se você gosta de cinema, mais cedo ou mais tarde encontrará algumas pedras no seu caminho. Se você prefere filmes atuais e mora em uma cidade pequena, você encontrará apenas blockbusters no cinema mais próximo – nada de filmes cult, estrangeiros ou alternativos. Se você gosta de filmes antigos, as coisas são um pouco mais complicadas. Além de ser considerado “esquisito” pelas pessoas ao seu redor – e eu digo isso com base na minha experiência – você, o fã de cinema clássico/mudo, passará por algumas fases. Depois de assistir a todos os filmes considerados “indispensáveis” – e isso pode demorar alguns anos – você vai querer mais, mais, e mais.

Mas o que pode ser feito se todos os seus ídolos estão aposentados ou mortos? Você pode ir atrás das filmografias completas, das biografias e de artigos escritos sobre eles. Sim, porque mesmo as estrelas do passado eram de interesse do público e se tornavam assunto de artigos e ensaios fotográficos em revistas – e muitas destas revistas podem ser encontradas na internet!

O que é uma celebridade? E uma estrela?

É difícil definir o que é exatamente uma celebridade mas, de acordo com o autor Fred Inglis, não é nada de novo. Celebridades existem desde, ao menos, o século XIX. Ser obcecado com celebridades também não é um conceito novo, mas esta atividade evoluiu muito rápido no último século – e hoje é comum vermos crianças que sonham em ser celebridades quando crescerem. Quando o interesse por celebridades é exagerado, o comportamento é inclusive considerado uma doença chamada, em tradução livre, de Síndrome de Adoração à Celebridade.

As raízes do fascínio por celebridades são históricas e estão ligadas aos heróis nacionais e à construção da identidade nacional. Com o tempo, a figura do herói foi substituída pela figura da celebridade por uma razão simples: você tem de morrer para se tornar um herói, mas precisa estar vivo para aproveitar seu status de celebridade. O sociólogo e filósofo polonês Zygmunt Bauman trata da mudança no nosso conceito de sociedade, e como laços comunitários fortes foram substituídos por laços sociais flexíveis.

Então, já definimos que uma celebridade é um herói da sociedade de consumo rápido e efêmero. Mas como o cinema e as revistas de cinema agiram na construção de celebridades?

As primeiras estrelas de cinema eram anônimas

Há muitas formas de se tornam uma celebridade. Hoje, uma celebridade pode ser um YouTuber, cantor, apresentador de TV, influenciador digital, ex-BBB ou mesmo alguém “famoso por ser famoso.” Mas cem anos atrás, havia uma maneira certeira de se tornar uma celebridade: ser uma estrela de cinema.

A profissão do ator existe há muitos, muitos séculos, desde a Grécia Antiga, porém as estrelas de cinema são um caso à parte. Não devemos nos esquecer de que as câmeras de cinema foram desenvolvidas e testadas como se fossem experimentos científicos. Os primeiros filmes eram posados e documentais, no sentido de que mostravam situações cotidianas, mas as pessoas estavam posando para as câmeras. Foi assim com os irmãos Lumière e Thomas Edison.

Quando o mundo finalmente percebeu que os filmes vieram para ficar, os cineastas, produtores e distribuidores decidiram que era hora de gerar lucro com o cinema. E como gerar o maior lucro possível? Deixando as estrelas de cinema sem créditos.

Sarah Bernhardt | Source: Biography of Sarah Bernhardt written by Alois M. Nagler for Britannica.com

Os produtores acreditavam que, se as primeiras estrelas de cinema se tornassem conhecidas do público – assim como era a estrela de teatro Sarah Bernhardt – elas iriam querer um salário maior. Os atores estavam atados aos seus estúdios – por exemplo, um filme era anunciado como estrelado pela Biograph Girl, em vez de dizer o nome da atriz principal. Mas o público sempre foi mais esperto, e capaz de reconhecer um rosto familiar em um filme. Logo, foi revelado que o nome da Biograph Girl era Florence Lawrence, e ela se tornou a primeira estrela de cinema. Com Lawrence e sua contemporânea Mary Pickford, um novo tipo de celebridade surgiu.

Antes da Cahiers du cinéma

Cahiers du cinéma, a revista francesa em circulação desde 1951 que se tornou sinônimo de análises cinematográficas ousadas e foi a primeira casa de muitos cineastas da Nouvelle Vague, é a primeira revista de cinema em que a maioria das pessoas pensa quando tocamos neste assunto. Ah, claro, há a Sight & Sound, famosa por divulgar, a cada 10 anos, a lista dos melhores filmes de todos os tempos, escolhidos por diversos críticos e cineastas. A Sight & Sound surgiu em 1932.

No entanto, muito antes disso, havia outras revistas de cinema em circulação. A primeira delas surgiu em 1911 (era uma fan magazine, oposts à trade magazine: a fan magazine era sobre filmes e estrelas, entquanto a trade era sobre compra e venda de celuloide, câmeras e outros maquinários). O primeiro número da The Motion Picture Story Magazine (que mais tarde passou a se chamar apenas The Motion Picture Magazine) dizia:

Esta publicação é tão exclusiva entre as centenas de revistas mensais que os Editores têm a certeza de que a novidade irá por si só atrair a atenção que a revista terá ao longo do tempo.

O que a The Motion Picture Story Magazine tinha que era tão exclusivo? Ela trazia contos ilustrados com imagens dos filmes que iam estrear nos cinemas – e que eram adaptação destes contos, obviamente. Sim, a primeira revista de cinema era cheia de spoilers: a história toda era contada, e o público já sabia de tudo quando ia finalmente ver o filme. E algumas revistas continuaram cheias de spoilers por muitos anos – especialmente em outros países.

Tintim por tintim

Você já ouviu falar que “o brasileiro não conhece limites”, certo? O mesmo vale para as revistas de cinema brasileiras.

A primeira exibição de imagens em movimento no Brasil aconteceu em 1896, no Rio de Janeiro, então a capital nacional. A pessoa responsável por trazer os filmes para o Brasil foi Paschoal Segreto, um homem de negócios italiano. As primeiras exibições não eram constantes, mas, vendo como eram populares, Segreto abriu em julho de 1897 o primeiro local para ter exibição contínua de filmes no país – nosso primeiro cinema.

Foto: Reprodução

Em 1898 Segreto inovou mais uma vez e lençou a primeira publicação no Brasil focada nas imagens em movimento. O Animatographo pode ter sido apenas um grupo de press-releases sobre a mais nova inauguração de Segreto, uma casa de variedades chamada salão Paris, onde diversos filmes eram exibidos – incluindo os dos Lumière e alguns feitos pelo irmão mais novo de Segreto, Afonso, que foram os primeiríssimos filmes feitos no Brasil. O Animatographo não era sobre estrelas de cinema: era sobre a própria geringonça que o batizava, e inclusive trazia textos em outras línguas sobre o equipamento.

Depois deste início arrojado, as revistas de cinema no Brasil quase desapareceram. Na década seguinte, não havia títulos exclusivamente sobre filmes, apenas curtas notas sobre o assunto nas revistas de variedades. Em 1911, O Cinematographo foi publicado no Rio. Era uma publicação de quatro páginas que se assemelhava a um almanaque, com contos, receitas e dicas, e era patrocinado por uma sala de cinema – então chamada de cinematographo – que lhe dava o nome.

Foto: Reprodução

As duas revistas de cinema mais famosas, A Scena Muda (1921-1955) e Cinearte (1926-1932), assim como a popular coluna de cinema na revista Para Todos (1919-1958), seguiam todas a mesma fórmula: nada de críticas. Ninguém queria ler sobre os ângulos de câmera e a parte técnica dos filmes – e, convenhamos, ninguém estava escrevendo sobre isso porque muito do vocabulário cinematográfico que conhecemos ainda estava em desenvolvimento. Todos queriam saber que tipo de história eles iriam encontrar quando fossem ao cinema. Por isso as revistas de cinema contavam tudo tintim por tintim: apresentavam o elenco, algumas imagens e toda a trama do filme – cheio de spoilers, obviamente. Os nomes eram comumente adaptados para se tornarem mais familiares para o público brasileiro – por exemplo, um personagem originalmente chamado Gilbert passava a ser chamado Gilberto aqui.

Isso é horrível, não? Bem, considerando a percepção moderna de que amizades podem ser desfeitas por causa de spoilers e levando em conta a infindável discussão sobre quando é OK publicar spoilers na internet, a maneira como os artigos nestas revistas eram escritos com certeza soa mal. Eu não sei se as pessoas antigamente não viam problemas em ter a surpresa estragada pelas revistas, e infelizmente não posso perguntar a ninguém que tenha vivido na era do cinema mudo se eles ficavam na boa com spoilers.

Mas vamos olhar por outro ângulo: vamos pensar como pesquisadores da história do cinema. Como aficionada que sou, fico triste sempre que penso que a maioria dos filmes mudos está perdida para sempre. De acordo com a Biblioteca do Congresso Norte-Americano, cerca de 75% de todos os filmes feitos entre 1896 e 1929 estão completamente ou parcialmente perdidos. Muitos sofreram com o desgaste do tempo, pois não havia preocupação com a preservação no começo da era do cinema, e os filmes deveriam ser apenas feitos, exibidos e, se possível, reciclados – filmando outra coisa por cima do mesmo negativo. Os filmes também eram gravados em material volátil, e muitos foram destruídos em incêndios.

Então, para nós, uma vez perdido, não há mais esperança de saber algo sobre o filme, certo?

Errado.

Graças à falta de limites do brasileiro, podemos reconstruir a história de um filme através destas revistas cheias de spoilers – e esta é provavelmente a maior contribuição das revistas para o cinema mundial: elas são fontes históricas.

A volta ao mundo em revistas de cinema

Voltemos ao novo conceito de celebridade. Com o cinema, a fama se transformou em negócio global. Um ator de teatro podia trabalhar em um só lugar de cada vez, e tinha de viajar longas distâncias para ser conhecido em outros países. Um ator de cinema, entretanto, podia ter seus filmes exibidos em vários países ao mesmo tempo – era apenas uma questão de fazer cópias dos filmes e enviá-los por correio, barco ou trem. Demoravam alguns meses até que as latas de filme chegassem a outros países e continentes, mas já era um grande avanço.

Os anos 1910 chegaram, e as estrelas de cinema se tornaram estrelas globais. Começando na metade desta década, durante a Primeira Guerra Mundial, o foco das revistas mudou. Agora, elas eram só sobre as estrelas. Em quase todos os países, estas revistas começaram a ser publicadas depois da guerra, e adentraram os anos 20 com grande sucesso. De acordo com a base de dados Domitor, os países com mais títulos de revistas sobre cinema, depois dos Estados Unidos, eram Itália e Espanha.

Não importava o país, o assunto era único: Hollywood. Havia um espaço mínimo dedicado aos filmes nacionais, e sempre o foco nas revistas de cinema eram os filmes feitos nos EUA. E as estrelas de Hollywood eram também uma parte importante das revistas: suas biografias, detalhes da vida amorosa e projetos futuros eram publicados ao lado de fotos glamourosas de página inteira.

Estas revistas foram fundamentais na agenda setting: ao focar nos filmes de Hollywood e na intimidade das estrelas, elas determinavam o que era mais importante que o público deveria saber, e quais filmes eles não poderiam perder. Hollywood e celebridade se tornaram palavras indissociáveis – e elas ainda evocam uma a outra até hoje.

Onde elas estão?

Você ficou interessado nessas revistas antigas que eu mencionei? Então eu tenho uma ótima notícia: há milhares de páginas digitalizadas e disponíveis de graça na internet. Você pode encontrá-las em:

  • Domitor: primeiro cinema (1899-1928), publicações de vários países | Disponivel aqui
  • Internet Archive: o paraíso dos pesquisadores | Disponivel aqui
  • Media History Project: Photoplay, Screenland, Modern Screen e muito mais | Disponivel aqui
  • Lantern: Photoplay de novo, Cine-mundial, Variety, The Film Daily e mais – em diversas línguas | Disponivel aqui
  • Hemeroteca Digital: A Scena Muda, Cinearte, Para Todos e muito mais | Disponivel aqui

E as revistas de cinema modernas?

Você provavelmente percebeu que a maioria das revistas de cinema criadas nos anos 1910 e 1920 pararam de circular nos anos 50. Isso foi, claro, por causa de uma nova fonte de entretenimento, a televisão, e a consequente queda e fim do sistema de estúdio.

Hoje a maioria das revistas de cinema que encontramos à venda estão cheias de fofoca, mas o amor pelo cinema resiste. Há muitas publicações online sobre cinema – como esta que você está lendo agora. Revistas de cinema online são o futuro.

Nós chegamos tão longe, vindo da era das estrelas de cinema anônimas até a pesquisa digital – nem mesmo em seus mais loucos sonhos Méliès imaginaria que estaríamos aqui, agora, mantendo vivas as memórias de personalidades como ele e muitos outros da história do cinema.

Leitura adicional

  1. Consuming Visions: Cinema, Writing, and Modernity in Rio de Janeiro by Maite Conde | Published by The University of Virginia Press
  2. A Short History of Celebrity by Fred Inglis – Review in The Guardian. July 17, 2010. Accessed on April 28, 2018.

Sobre a autora

Letícia Magalhães é historiadora e especialista em comunicação e marketing em mídias digitais. Sua maior paixão, entretanto, é o cinema, e por isso ela mantém seu blog sobre filmes clássicos, o bilíngue Crítica Retrô, e é uma das editoras da publicação multilíngue Cine Suffragette.

Did you like what you read? Support us as we explore film cultures from around the world; experience cinema in new ways with us. Let us keep The World of Apu free for all!

Become a Patron!